Conceitos de unidade da Igreja
Em meio a tantas facetas da vida da igreja que necessitam de mudanças, nenhuma tem mais urgência de ser atualizada do que a maneira como se vê a unidade. De fato, todos os outros aspectos da vida cristã têm relação direta com esse assunto, porque é ele que determina em que universo eles se manifestarão.
Quais são os limites da verdadeira Igreja do Senhor Jesus Cristo? Quem está dentro e quem está fora? Existem somente “irmãos” dentro da igreja, ou existem também “primos”, “irmãos desgarrados”, “cristãos de segunda categoria” e “pessoas salvas, porém heréticas”? Como devemos tratar essas outras categorias de cristãos? Devemos manter certa distância deles para que não nos “contaminem”? Devemos confraternizar com eles apenas em eventos esporádicos como a “Marcha para Jesus” ou em eventos ecumênicos? Se desenvolvermos relações mais próximas com aqueles que discordam de nós sobre muitas questões de fé ou doutrina, não corremos o risco de sermos influenciados por eles e cairmos em heresia? Como manter a nossa integridade ideológica e doutrinária e, ao mesmo tempo, praticar o amor que Jesus ordenou que tivéssemos uns pelos outros?
No decorrer de sua longa jornada, a Igreja tem experimentado vários tipos de resposta a essas perguntas, mas nenhuma tem-se mostrado satisfatória. No início, procurou-se traçar uma linha bem clara entre os “certos” e os “errados” por meio da fidelidade a uma instituição única (supostamente estabelecida pelos apóstolos). Com o passar do tempo, ficou claro que esse conceito não era válido, porque os “certos” se revelaram bastante “errados”, e muitos “errados” eram mais “certos” que eles! Ou seja, no início a linha demarcatória estabelecida pelos “pais da Igreja” realmente excluía os hereges e protegia a verdade (deixou de fora os gnósticos, definiu os credos e o cânon), mas, depois, por causa de intrigas políticas e brigas por poder, a linha passou a separar irmãos por motivos triviais. No fim, a hierarquia humana acabou perseguindo, torturando e matando verdadeiros servos do Senhor Jesus – ou seja, a linha demarcatória começou novamente a separar falsos de verdadeiros, só que deixando os falsos dentro e os verdadeiros fora!
Na época da Reforma Protestante, apelou-se à outra base de unidade (já que a anterior tinha-se mostrado tão falha). Os reformadores rejeitaram a autoridade da instituição e colocaram em seu lugar a autoridade da Bíblia, a Palavra escrita de Deus. Nesse caso, o problema não demorou para se revelar, pois, desde o início, não haviam conseguido chegar a um acordo em suas interpretações da Palavra. Por causa disso, essa base de unidade tornou-se uma base de divisão, com cada linha de interpretação excluindo e anatematizando as demais.
Mais recentemente, no século passado, com os poderosos derramamentos do Espírito Santo sobre todas as diversas denominações do cristianismo, muitos pensaram que finalmente haviam encontrado a chave da verdadeira unidade – o batismo no Espírito Santo. Infelizmente, isso não foi comprovado pela prática, pois, além das divisões doutrinárias e institucionais, surgiu um novo tipo de divisão baseado em experiências subjetivas e maneiras diferentes de exercer os dons do Espírito.
Precisamos voltar à origem
Nesse assunto, como em todos os outros que tratam da igreja, a única maneira de promover a reforma necessária começa com um retorno às suas origens. Se isso não for feito, corre-se o perigo de, ao invés de reformar a igreja, criar-se algo totalmente diferente, um Frankenstein espiritual.
É bem seguro afirmar que Jesus nunca planejou uma organização que mantivesse seus seguidores unidos. De fato, ele nunca imaginou qualquer tipo de organização para seus discípulos. Se quiséssemos resumir seu propósito em vir para a Terra, poderíamos dizer que ele veio nos dar a mesma vida que ele compartilha com o Pai e com o Espírito (vida esta que faz com que, mesmo sendo três pessoas, eles sejam de fato um só Deus tamanha a união existente). Se essa é a vida que ele nos doou por meio de sua morte e do envio do Espírito Santo, era de se esperar que todos que recebessem essa vida também compartilhassem essas características divinas de amor e unidade.
Portanto, a única base autêntica de unidade da Igreja é essa: fazer parte da mesma família, não por ser membro da mesma instituição, nem por crer na mesma doutrina ou possuir os mesmos dons e experiências com o Espírito, mas por ter sido gerado pela mesma semente divina (a Palavra do Evangelho), compartilhar do mesmo sangue (o sangue de Jesus) e receber o mesmo Espírito.
Na medida em que os elementos da cultura e da racionalidade humana penetraram na Igreja e contaminaram o Evangelho, ficamos separados uns dos outros. Por outro lado, na medida em que voltamos à nossa origem e valorizamos aquilo que recebemos de herança por meio do Evangelho, somos unidos uns com os outros com um cimento irresistível e indestrutível: o amor ágape, que é a essência do próprio Deus.
Quais são as implicações disso na prática? Nada melhor do que a família natural para ilustrar o funcionamento ideal da igreja. Numa família, o que une os membros não são as crenças ou práticas comuns, e sim a sua origem. O que torna alguém parte da família é o seu nascimento. Ele pode ser chato, doente, feio, deformado ou rebelde – mesmo assim, continua sendo da família. Ele pode mudar-se para milhares de quilômetros de distância e passar anos sem comunicação – isso não muda o fato de que continua pertencendo à família.
Se enxergarmos a Igreja da mesma forma, tenho certeza de que nossos relacionamentos mudarão radicalmente. Continuaremos a ter problemas com irmãos que têm temperamentos difíceis, crenças diferentes ou práticas que consideramos fanáticas, mas nunca os consideraremos como cidadãos de segunda classe ou como se não fossem nossos irmãos. E é isso o que Deus requer de nós: que os tratemos como tais.
Unidade orgânica
As velhas maneiras de pensar a identidade da Igreja não servem mais. Não podemos ficar encastelados em nossas fortalezas religiosas pensando que se não somos os únicos certos, pelo menos somos os mais certos. Por outro lado, não adianta ficarmos dentro de nossos cubículos, dando a mão por cima das nossas paredes aos outros que estão dentro dos cubículos vizinhos, e acharmos que isso é unidade. Precisamos redescobrir a essência da vida divina e permitir que essa vida nos leve para fora das limitações impostas pelo homem.
Unidade não é uma ideia política ou ideológica. Não é uma opção interessante. Antes, faz parte da natureza intrínseca do Evangelho. Está Cristo dividido? Existe mais de uma fé, um Senhor, um Espírito, um Corpo e um batismo? O Corpo de Cristo não pode subsistir dividido. Cada parte depende da contribuição da outra. Unidade é uma necessidade orgânica, biológica, essencial para a continuidade da vida.
Não somos chamados para sermos magnânimos e “tolerar” as diferenças. Precisamos das diferenças para sobreviver. Quando entendermos isso, a unidade acontecerá na prática. Não é uma boa ideia ficarmos unidos com irmãos que pensam de forma diferente de nós – é uma necessidade!
Por outro lado, unidade não implica em ter de trabalhar em conjunto com pessoas às quais o Espírito Santo não nos juntou. Deus coloca cada membro do Corpo no lugar e na função que lhe apraz. Não somos nós que escolhemos essas coisas. Precisamos entender que a unidade não é baseada em democracia. É baseada na vontade de Deus, em seus planos soberanos, em seus pensamentos que são mais altos do que os nossos.
Assim como, no corpo natural, existem conjuntos inteiros de células (órgãos) e conjuntos de órgãos (sistema circulatório, respiratório, digestivo, nervoso) que trabalham juntos de forma especializada em favor de todo o corpo, no Corpo de Cristo existem redes de relacionamento e cooperação ministerial que interligam pessoas de formas específicas. Não existirá nada errado com isso se essas “redes” tiverem visão de todo o Corpo e não pensarem que todos precisam juntar-se a elas para serem “certos”. Enquanto houver humildade e discernimento de todo o Corpo, os diferentes “blocos” e “ênfases” trarão benefícios para todo o Corpo. Os problemas surgem quando há um espírito de controle, atitudes erradas sobre autoridade espiritual e manipulação emocional. Se alguém de determinada rede quer ter comunhão com irmãos de outra, e os seus líderes o reprimem, dizendo que está sendo rebelde ou saindo da “visão”, aí temos o espírito sectário que traz divisão e não permite que a vida flua livremente pelo Corpo.
O grande desafio do século 21 é trabalhar em nossa função específica dada por Deus e, ao mesmo tempo, “discernir o Corpo”. Precisamos sentir profundamente as nossas carências e fraquezas e procurar socorro e suprimento nas outras partes da Igreja mesmo que não concordemos com elas em muitas coisas. Se reconhecermos que todos fazemos parte da mesma família e que a unidade já é uma realidade a partir do momento que nascemos de novo, perderemos nosso temor e começaremos a receber as contribuições que Deus repartiu para aqueles que antes menosprezávamos como “primos” ou “irmãos de segunda classe”. Essa atitude exige que abramos mão de convicções e atitudes antigas e arraigadas. Precisaremos entender e aceitar de coração que Deus é muito maior do que a nossa mente finita e mesquinha e que, se ele nos recebeu com todas as nossas falhas e erros, nós também podemos aceitar nossos irmãos “diferentes”.
Fonte: Revista Impacto – Edição 74